Brian De Palma é o tipo de diretor que consegue mudar completamente uma cena ao adicionar apenas um elemento cênico. Todo o contexto se altera: a história toma um rumo abrupto e, o que é mais importante, direto. Ele definitivamente foge dos rodeios e vai ao ponto certo. A primeira cena de Obsession é um exemplo disso. Vemos um casal dançando valsa. O homem e a mulher estão apaixonados. O ambiente tem aquela leveza dos grandes momentos da vida. Objetos brilham ao redor. Mas há um garçom servindo os convidados: ele se aproxima da tela e a preenche quase que completamente. Com um movimento ascendente de seu corpo, uma arma, escondida em sua cintura, torna-se visível (para o espectador, claro). Em um lapso, tudo se modifica. A tragédia é anunciada: momentos depois, ela se confirmará, abalando o seio daquela família aparentemente feliz: após um seqüestro, a esposa e filha serão (indiretamente) assassinadas. O protagonista, Michael Courtland, nunca mais será o mesmo.
Este homem, interpretado por Cliff Robertson, após o fatídico acontecimento, perde o rumo da sua vida. Torna-se opaco, insensível aos acontecimentos do mundo ao seu redor, apenas se concentrando, ainda mais, no seu trabalho empresarial. Passarão quase duas décadas de inércia até o momento em que, por milagre, numa viagem a negócios, depara-se com uma jovem inexplicavelmente semelhante à sua falecida esposa Elizabeth (Geneviève Bujold). Apenas o corte de cabelo não é o mesmo – psicologicamente, porém, não se sabe exatamente se há ou não semelhanças. A verdade é que o herói não se importa: a partir do momento em que a conhece, só lhe interessa a substituição, superficial, de sua amada – cabe a ele, na sua missão macabra, mesmo que não perceba, moldá-la exatamente de acordo com suas expectativas e lembranças passadas.
O local em que ele e Sandra, eis o nome dela, se conhecem, diga-se, é o mesmo em que, muitos anos antes, conhecera sua Elizabeth – uma igreja histórica de Florença. Aqui, Sandra ocupa-se, como ajudante, com a restauração das pinturas da parede. Em trecho-chave do filme, eis as palavras dela: “Há muitos anos atrás, após as enchentes, a umidade infiltrou numa parte do altar e começou a descascar, revelando uma velha pintura por baixo. Então os estudiosos de arte tiveram que decidir o que fazer. Deveriam remover e destruir uma grande pintura de Daddi para descobrir o que parecia ser um rascunho debaixo dela? Ou deveriam restaurar o original, sem saber ao certo o que está por baixo? O que você faria?”
O filme gira em torno destes questionamentos. Deveria o protagonista aceitar o fantástico encontro como mera coincidência do destino? Ou investigar quem é exatamente a jovem? Procurar nela características novas ou considerá-la apenas um rascunho do projeto original – isto é, sua falecida esposa? O personagem, como já se percebe pela sua resposta à pergunta – “Ficaria com a original. A beleza deve ser protegida.” – não está disposto a investigar coisa alguma. Em sua odisséia obsessiva e egoísta, tentará aproximar ao máximo o rascunho da “grande pintura” que era a sua amada. Por isso, irá pagar caro.
Além da essência de Obsession – o roteiro, vale lembrar, é de Paul Schrader – está a forma como o diretor conduz a narrativa. Tudo bem que eu já havia matado a charada lá no meio do filme – mas deixemos isso de lado. Aqui, o trabalho de Brian De Palma está dentro do padrão daquela que pode ser considerada a sua fase mais inspirada (que vai até Body Double?). Isso quer dizer que Obsession tem identidade própria, mesmo quando a comparação com Vertigo (sem esquecer as pinceladas de Rebecca e Marnie) seja inevitável, assim como a inferioridade daquele em relação a este absoluta: em nenhum momento De Palma supera o seu mestre nas seqüências que podem ser consideradas mais importantes. A forma como o espectador (e neste aspecto, eu me coloco como tal e acabo por criar uma generalização, afinal de contas, cada um sabe como se sente ao ver um filme) é absorvido pela história resume a hierarquia de um com o outro: em geral, Vertigo é hipnotizante, Obsession não.
No entanto, comparar filmes parecidos sempre foi uma prática superestimada. Não estamos falando de um original e sua refilmagem, mas de duas obras diferentes, criadas por pessoas diferentes em contextos diferentes. No mais, entre os dois exemplares, uma coisa em comum se impõe: a genialidade de Bernard Herrmann, um dos três maiores compositores de todos os tempos. A pergunta que eu faço é: sem ele, Hitchcock teria chegado aonde chegou? Outro questionamento: o filme não seria melhor se houvesse a conjunção carnal entre Courtland e Sandra (aposto que esta possibilidade se concretizaria se não fosse tão chocante, até para os dias atuais)?