A Morte Não Manda Recado (Sam Peckinpah, 1970)

A morte não manda recado é Sam Peckinpah em estado de graça. Aqui quase não há cenas de violência. Até mesmo sua marca registrada – o efeito em câmera lenta – não será encontrado neste filme. Por isso que a escolha do título no Brasil não poderia ser mais desecertada: dá a impressão de ser este um daqueles faroestes brutos, quando na verdade talvez seja a obra mais romântica da carreira do diretor. É o amor ao oeste e às mulheres.

O sujeito que dá nome ao filme (Jason Robards, estupendo) é um fracassado que, após ser traído por dois amigos e abandonado no deserto, encontra água (que vale tanto quanto ouro) num tremendo golpe de sorte. Algum tempo depois, em uma visita à cidade para adquirar a posse legal da terra, conhece o grande amor de sua vida. Ela é, naturalmente, uma prostituta. São esses tipos marginalizados, anti-românticos, rebeldes que Sam Peckinpah concentrava seus esforços artísticos. Não são intelectuais ou pessoas bem-sucedidas – é o povo tal como ele é, sem idealizações.

Muitos acusam Sam Peckinpah de ser machista. Creio que essa não é uma visão muito correta. Ele está mais para um realista. Ora, nos ambientes que seus filmes passam – em geral, rodeados pela desigualdade social, corrupção, jogatinas, bordéis, gângsteres, sob leis próprias – estranho seria romantizar. Não vejo muita diferença entre os seus personagens masculinos e femininos: ambos buscam a sobrevivência – eles, em geral, com a força bruta; elas com o corpo. Mas não se limitam por aí. Como é o caso do padre fajuto: também ele se utiliza do misticismo e do respeito pela roupa de clérigo para sobreviver (ou conquistar algumas mulheres).

Como ia dizendo, A morte não manda recado é bem diferente dos filmes mais famosos de Peckinpah. É claro que os temas recorrentes estão aqui, mas sob outra corpagem. Uma moldura mais descontraída: no bom sentido, parece um filme de bêbado (quem viu os closes nos peitos de Stella Stevens viu, quem não viu deve ver e sorrir). Não que ele seja confuso ou difícil de ser compreendido – felizmente não é (a montagem, inclusive, é bem linear). A diferença está na sua atmosfera: a atmosfera de um bêbado apaixonado.

Por vezes, o filme é uma comédia. Em outros momentos, passa pelo melodrama. O velho oeste, violento e decadente, é coadjuvante de um pequeno negócio do protagonista que vai se expandindo com o passar do tempo (o passar do tempo…) O homem analfabeto e solitário consegue ganhar dinheiro e conhece o amor de sua vida. Ela, a prostituta tão solitária quanto, também se apaixona por ele e herda uma fortuna logo após se casar na cidade grande. Comparando com outras obras da carreira de Peckinpah, a vida aqui é mais otimista.

No entanto, quando os amantes se reecontram, no auge de suas existências, o cabo Hogue morre após um ato estúpido de heroísmo. Irônico e bem humorado, A morte não manda recado não poderia terminar de outra maneira. Um grande filme: pode não ter o impacto visual de um Meu ódio será tua herança, ou Sob o domínio do medo, ou Pat Garrett & Billy The Kid, mas possivelmente é o que melhor indica a personalidade deste grande diretor americano.

Sam Peckinpah dirige

Dustin Hoffman em Sob o domínio do medo (1971)

O blog Dia da Fúria está fazendo uma retrospectiva da carreira do diretor. Clique aqui para começar a acompanhar. Falando nisso, preciso mesmo pegar uns filmes do Peckinpah para ver urgentemente, como The deadly companions [Parceiros da morte], que conta com a gloriosa Maureen O´Hara no papel principal.

Um de nós morrerá/ Pat Garrett & Billy The Kid

Estava vendo agorinha o primeiro trabalho de Arthur Penn para o cinema, The left handed gun, um faroeste que retrata a lendária história de Billy the Kid  e Pat Garrett. Sendo eu um grande admirador da versão de Sam Peckinpah, não pude evitar comparações: a surpresa é que o filme de Arthur Penn é tão bom ou até mesmo melhor que a também obra-prima de 1973. Os últimos 40 minutos de The left handed gun correspondem ao ponto de partida da versão de Peckinpah (a cena em que Billy está preso em uma casa com dois vigias é praticamente igual ao que foi filmado por Penn) que, então, adiciona elementos mais modernos e melancólicos durante a narrativa – auxiliados pela trilha sonora soberba de Bob Dylan – e retoma outros (como as paisagens por onde Billy passa até ser alcançado por Pat Garrett).

São filmes de épocas distintas: o faroeste estava morrendo quando Peckinpah realizou seu canto de cisne – e o cinema muito mais violento e realista (na cena em que Billy encontra mexicanos numa carroça, uma moça está sendo estuprada quando o personagem faz justiça com suas próprias mãos); a versão de Penn também cavalga passo a passo com o cinema de sua época: o personagem de Paul Newman é um rebelde, um James Dean do oeste americano (ator que havia morrido dois anos antes) e representa os anseios de uma juventude que procurava estabelecer uma posição diferente na sociedade particularmente conservadora – dessa forma, para que os dois filmes pudessem ser essencialmente iguais, The left handed gun poderia perfeitamente ter trilha sonora de… Elvis Presley! Uma brincadeira, claro, mas acho que o resultado seria até interessante.

Uma diferença fundamental entre os dois filmes está relacionada ao estudo comportamental dos personagens-chaves. Na versão de Peckinpah, James Coburn interpreta um homem que, ao notar que “o país está ficando velho”, decide “envelhecer com ele” para obter, assim, respeito e estabilidade financeira e social. No filme de Arthur Penn, o fator fundamental para que Garrett tome a decisão de ser xerife (havia recusado a proposta pouco tempo antes, por consideração a Billy the Kid) surge na sua festa de casamento, quando Billy assassina um inimigo após ter prometido a Pat que não o faria; ele dá a palavra de honra mas a ignora, estraga o casamento de Garrett que, tomado pelo ódio, jura vingança após tamanho desrespeito: irá capturar Billy the Kid para que ele seja julgado pelos crimes que cometeu. O ponto de partida do personagem também irá encontrar desfechos distintos e proporcionais em relação às causas da “traição” de Garrett.

Sobre “the Kid”, a grande diferença das duas versões corresponde ao seu gênio: a interpretação de Paul Newman é histérica, suas atitudes muitas vezes são inexplicáveis e tomadas por um ódio quase constante, que o leva a dizer e fazer coisas sem pensar; o personagem de Kris Kristofferson é muito mais maduro, melancólico e frio, não é um “rebelde sem causa”, mas, sim, um homem que tem perfeita noção do que está acontecendo na sociedade em que vive – dessa forma, entende a decisão de Garrett ao trocar de lado; o personagem de Newman sequer reflete sobre a posição do antigo companheiro tamanho é o seu ego. O desfecho dos dois é o mesmo – porém, a morte de Newman é quase um suicídio de um jovem sem destino; a morte de Kristofferson é o assassinato do justiceiro, de um Oeste que nunca mais retornará.

Em The left handed gun há ainda um personagem de grande importância: um jornalista que quer transformar Billy the Kid em mito, acompanhando seus rastros após ter ouvido falar de sua figura já famosa no Leste. Em uma cena, se dá conta de que “a pessoa” é completamente diferente “da lenda” – e esta ideia talvez seja o principal ponto de ligação entre as duas obras. Desmistificada ou não, a história de Billy the Kid foi transmitida geração após geração – e há até uma imagem do criminoso, segurando uma arma na mão esquerda (apesar de os indícios darem conta de que ele era mesmo destro): a recriação do momento em que a foto é tirada é um dos grandes momentos da versão de Arthur Penn, que influenciou não só um filme, mas parte da obra de Sam Peckinpah.