A Bela do Bas-Fond (Nicholas Ray, 1958)

A Bela do Bas-Fond [Party girl] é uma das obras-primas da carreira de Nicholas Ray. Estranhamente esquecido ou esquecido por ser estranho? Seria um melodrama? Um filme de gângster? Talvez um noir? Um thriller musical? Pouco importa. Vale mais ressaltar que dessa miscelânea salta aos olhos a coerência, a solidez de uma obra que poderia previsivelmente fracassar nas mãos de outro diretor ou poderia ser grande, ainda que falha, nas mãos de outros mais talentosos. Pois Nicholas Ray alcançou uma forma precisa, convincente, enfim, conseguiu domar um material que, olhando para trás, parece indomável.

E que dupla de protagonistas inesperadamente excepcional! Cyd Charisse, a mulher das pernas perfeitas, e Robert Taylor, com uma expressividade pouco vista no cinema. Ele interpreta um advogado brilhante que trabalha para a máfia. Tem um problema na perna – é manco – de modo que a única forma de conseguir respeito da sociedade é ser um dos melhores de sua área, ainda que isso contrarie seus princípios. A mulher, ao contrário, como várias outras de sua época, consegue subir na vida usando exatamente aquilo que mais falta ao outro: suas pernas. Este é o mundo tal como ele é. E creio que poucos diretores entenderam tão bem o mundo como Nick Ray.

Lee J. Cobb vive um gângster com toda aquela sua peculiar capacidade em ser grosseiro, rústico, com os nervos à flor da pele. Seu personagem é um escroque, um assassino que convive na alta e podre sociedade. Um animal vestido com os ternos mais caros. Grande atuação. Nicholas Ray, além de um mestre no campo visual, verdadeiro artista das imagens, sabia dirigir bem seus atores. Mas todos nós conhecemos as suas maiores qualidades. Sem delonga, basta lembrar o que dizem: o cinema é Nicholas Ray.

Delírio de Loucura (Nicholas Ray, 1956)

Meus heróis não são mais neuróticos do que a platéia. A menos que sinta que um herói está tão fodido quanto você e que você poderia cometer os mesmos erros que ele, você não vai ter nenhuma satisfação quando ele praticar um ato heróico, porque neste caso você pode dizer: “Diabo, eu poderia ter feito isso também!”. E é essa a obrigação do cineasta – dar uma sensação intensificada de experiência às pessoas que pagam para ver seu trabalho.

Nicholas Ray.

Delírio de Loucura (Bigger Than Life, 1956)

Em Bigger than life, James Mason – responsável também pela produção do filme – vive um professor tradicional, um homem evidentemente capacitado que, por esses problemas da vida, acabou não tendo o reconhecimento merecido. Vive com dificuldades em um bairro de classe média, com esposa e filho pequeno – sem a família saber, trabalha vespertinamente para uma empresa de táxi. Apesar de frustrado, nota-se sua perseverança em manter a casa feliz – e, aos trancos e barrancos, vai conseguindo. Mas tudo muda quando lhe é diagnosticado uma doença rara nas artérias. Para sobreviver, submete-se a um método pouco testado: o tratamento com cortisona. Tratamento para toda vida e sob controle rígido: uma pílula a cada seis horas.

A situação é mais ou menos esta: se a medicação for interrompida, ele morrerá – e, morrendo, o que será de sua família? Também na circunstância oposta, o uso exagerado poderá acarretar sérios problemas psicológicos. Para se livrar do efeito normal de bipolaridade após o tratamento – um James Mason instável, ao mesmo tempo com excesso de felicidade e sensação de grandeza (financeira e intelectual) e, do lado oposto, com crises de melancolia e ansiedade – ele aumenta as doses da medicação: o resultado, como se previa, é um enorme abalo de personalidade que modificará a vida de toda a sua família.

Aquele professor esforçado e aparentemente liberal se transforma em um educador com tendências conservadoras. Quase um militar. Para esse novo homem, a infância é “uma enfermidade que só pode ser curada através da educação rígida.” Prega isso nas reuniões escolares, causando espanto em alguns e admiração em outros naqueles tempos da bomba atômica e da perseguição aos comunistas. Na sua casa, passa a ser grosso com a esposa e ameaçador com o filho – tudo para fazê-lo ser um homem “de verdade” no futuro, bem-sucedido tanto nos estudos como nos esportes. Até mesmo o seu casamento está, na visão dele, encerrado por “diferenças intelectuais inconciliáveis”. Chega até a questionar as palavras da bíblia, esbravejando em momento crucial do filme as seguintes palavras: “Deus estava errado!”

Não restam dúvidas: este homem está achando que é grande demais. Alguém precisa interromper seu vício e conseqüente loucura antes que seja tarde. Resta à mulher, típica dona de casa, se libertar e tomar algumas atitudes pontuais – a personagem de Barbara Rush, nessa transformação do marido, passa a ser um pouco mais independente porque agora a responsabilidade do bem-estar da família está praticamente em suas mãos. É bem verdade que a ajuda de um amigo próximo, interpretado por Walter Matthau, nesse processo é fundamental, mas a grande força do filme é mesmo a dona de casa.

Nicholas Ray era realmente um mestre no uso do CinemaScope: a amplitude da imagem neste filme se relaciona perfeitamente com as várias possibilidades de alcance da insanidade de James Mason – graças também, é claro, ao enorme talento do ator. A grande cena do filme, de influência hitchcockiana, é o melhor exemplo de sintonia entre os dois gênios. Nela, Mason sobe as escadas em direção ao quarto do seu filho para sacrificá-lo como resposta a uma “visão divina”: está com uma faca em mãos, pronto para o crime, mas logo sua visão é distorcida e completamente tomada pelo vermelho – ele é incapaz de matar: a deturpação de sua personalidade, neste ponto, chega ao limite e sua verdadeira consciência reage com repulsa biológica. Mas nunca ele se livrará das pílulas – e poderá passar por situações semelhantes indefinidamente.

Bigger than life é mais do que um filme de drama familiar. Retrata bem os efeitos da bipolaridade e do vício nessa instituição básica chamada família. É um filme sobre união, mas não teria metade de sua força se Nicholas Ray o tratasse mais como um melodrama do que um thriller de enorme tensão psicológica. O título do filme ainda é uma incógnita para mim – o que é, exatamente, maior que a vida? Seria a complexidade da mente humana? Ou a força do companheirismo? Ainda não sei com segurança. O que parece certo é que, somente a família, com paciência e compreensão, poderá evitar que aquele professor, frustrado mas digno, tenha novas recaídas e se torne em um psicótico ególatra.

Johnny Guitar (1954)

Por João Bénard da Costa.

Era inevitável. Tinha de ser. Se escrevo sobre “os filmes da minha vida”, como podia ficar de fora “o filme da minha vida”, my Johnny Guitar? Só mesmo quem não me conheça nem mais gordo nem mais magro, podia supor que um dia destes – mais cedo ou mais tarde – o Johnny Guitar não enchia esta página.

Faz parte das minhas lendas – como essa de dizer-se que eu sabia o Larousse de cor aos sete anos – atribuírem-me centenas de visões do Johnny Guitar. Num caso como noutro há exagero. Só vi o Johnny Guitar 68 vezes, entre 1957 e 1988. Dá para saber de cor? Nunca se sabe o Johnny Guitar de cor. Cada vez é uma nova vez.

Como gênero, é classificado entre os westerns. Estreou-se na América, a 27 de Maio de 1954, sob o signo de Gêmeos. É um filme de Nicholas Ray, que tinha 42 anos, 9 meses e 20 dias na noite de estréia. Na filmografia do autor, iniciada em 1948, é o “opus 9”. Depois dela assinou mais 13 longas-metragens, até morrer, “lightning over water”, num filme de Wim Wenders, em 1979.

Johnny Guitar foi feito para uma pequena companhia – a Republic – e custou pequeno dinheiro. A crítica americana tratou-o com os pés (“the silliest film of the year”), mas o público, sem que ninguém conseguisse explicar por que, encheu as salas meses a fio. Herbert J. Yates, produtor da obra, abarrotou os bolsos. Quando o filme chegou à Europa – em 1955 – as posições críticas extremaram-se. Alguns – poucos – apanharam o micróbio a que há mais de trinta anos dou casa e pucarinho. A maioria achou que só gente gravemente perturbada ou gravemente analfabeta podia gostar. Ou, então, cegos, surdos, mudos, paralíticos e aleijadinhos dos cornos. Eu e mais alguns passamos vexames, quando a polêmica chegou a Portugal. O nosso delírio provocava. Quem provoca maiorias ou o senso comum acaba sempre por levar mais do que dá.

Só que, no caso de Johnny Guitar, vivi o bastante para ver o mundo dar as tais voltas. Quando, em 1981, programei o filme para Gulbenkian, num ciclo de cinema americano dos anos 50, a enchente foi tal que teve de haver bis. Depois, de cada vez que o filme passa na Cinemateca (e tenho-o programado com razoável freqüência), não cabe um alfinete. Uns milhares de portugueses vão hoje por Nick Ray. Aconteceu o mesmo por toda a parte. “La Belle etla Bête du western”, como à época escreveu Truffaut, transformou-se na própria definição de cult movie.

Nick Ray, que também viveu o suficiente para assistir a esta viragem, adiantou um dia algumas razões para explicar este fenômeno: 1) foi a primeira vez, num western, que as mulheres foram simultaneamente as principais protagonistas e as principais antagonistas; 2) é um filme cheio de luz e calor. Opunha-se ao estilo do “cinema negro” que predominava nessa época; 3) é um filme em que a cor é valorizada, devido a uma hábil estrutura arquitetônica; 4) foi o primeiro filme a utilizar a cor em toda a sua potencialidade; 5) utilizou o décor e a paisagem para potencializar ao máximo a imagem.

Não serei eu quem o desminta, mas muitas dessas coisas foram à época das que mais serviram para atacar a obra. Odiaram as mulheres (Joan Crawford e Mercedes McCambridge), acharam a cor (um processo chamado trucolor) de insuportável mau gosto, berrante e exageradíssima. Por mim, acho que não vale a pena tentar explicar. De Johnny Guitar só sou capaz de falar delirando. Deus e tantos – amigos e inimigos – sabem como é quando me largam…

Disse-se, por exemplo, que era o filme com mais belo diálogo da história do cinema (eu, pelo menos, disse-o). Alguns convenceram-se por esse lado e recordo programas de cineclubes, ou artigos de revistas, que publicaram aquele famoso encadeado de perguntas e respostas entre Guitar (Sterling Hayden) e Vienna (Joan Crawford) quando começam a evocar o passado, na noite da chegada de Johnny ao saloon de Vienna. É quando ele lhe pede para ela entrar dizer “something nice”, quando ele lhe pede para ela lhe mentir. “Tell me you love me like I love you.” Mas, reduzido a escrito a seco, o diálogo é constrangedoramente banal. Se as pessoas ficam com tal memória dele é pelo concerto de vozes que se ouvem no filme – raspante a de Crawford, átona a de Hayden – e pela associação delas à fabulosa partitura de Victor Young. É pelo modo como a câmera e os corpos se movem durante, é pelo contraste dos encarnados, dos verdes e dos castanhos. É pela prodigiosa presença daquele décor gruta, alucinantemente barroco, simultaneamente mausoléu, bordel e casa de feitiços.

Muitas vezes ouvi a banda sonora de Johnny Guitar sem ver as imagens. Tudo bem, por acréscimo, toda a memória do filme se repovoa. Mas, para que isso suceda, é preciso haver memória, é preciso ter-se visto o filme. Se é verdade que Johnny Guitar é também uma ópera, não o é menos que está dependente daquela única e irredutível mise en scène.

Rever as imagens (ou os sons) do Johnny Guitar é rever a recordação delas. Para quem o vê pela primeira vez é ainda de rever que se trata. Porque todas as personagens – os doze atores principais, cada um deles essencial – não fazem outra coisa.

Quando o filme começa – na tarde em que mataram o irmão de Emma (Mercedes McCambridge) – Johnny Logan, que se irá se chamar Johnny Guitar, volta para o pé de Vienna, de quem se separou há cinco anos. Por que se separaram? Por que o mandou chamar ela? Por que volta ele? Nunca, no filme, nos são dadas respostas a tais perguntas. Também nunca sabemos o que se passou com cada um deles nesses cinco anos em que não se viram, entre uma tarde no Hotel Aurora (desse hotel, sim, se fala no filme) e a tarde em que Johnny regressa. Mas, nesses cinco anos, se fabricou o sentimento dominante de cada um dos protagonistas: a amargura de Vienna, o cansaço de Johnny, o ódio de Emma, ou o amor por Vienna daquele miúdo loiro que acaba com o pescoço rasgado, no cavalo e na forca, a pedir que cumpram a promessa que lhe tinham feito de o salvar.

Johnny Guitar é um filme construído em flash-back sobre uma imensa elipse? Ou é uma imensa elipse construída sobre um flash-back que não pode come back? Ou será que é tudo a mesma coisa?

Não vou continuar. Como as coisas muito grandes, Johnny Guitar não se explica. Conta-se (vê-se) outra, outra e outra vez como as histórias que se contam às crianças, até que tudo se saiba de cor e se aprenda que tudo está certo nelas. É a Imitação de Cristo dos cinéfilos. Basta abrir-se ao acaso e encontrar-se a frase certa. Basta ver pela sexagésima oitava vez e encontra-se a resposta certa para o que se está a viver.

Quando o bando de Emma entra pelo saloon de Vienna, para a prender, os misteriosos croupiers param as roletas. Enfrentando Emma com o seu terrível olhar, Vienna, sem desviar os olhos dela, dá uma seca ordem: “Keep the wheel spinning, Ed. I like to ear it spin.” No fim de cada visão de Johnny Guitar, só me apetece dizer aos projecionistas: “Keep the film spinning, Ed. I like to see it spin.” Tanto, tanto.