Burt Lancaster e Tony Curtis formaram uma célebre dupla de jornalistas em The sweet smell of success [A embriaguez do sucesso, 1957], em que a relação mestre/aprendiz era o centro da narrativa – no caso em questão, Lancaster era o exemplo máximo de Curtis em sua estratégia de subir meteoricamente na profissão, até o ponto em que fazer parte da imoralidade parecia ser uma regra, não uma exceção. Um ano antes, porém, a dupla já tinha provado que possuía química suficiente no exercício de uma dramaticidade eficiente, poderosa e, em nível maior, ambígua.
Refiro-me a Trapeze, dirigido por Carol Reed, que é provavelmente um daqueles diretores injustiçados pelo tempo, ainda que sua herança em The third man já seja suficientemente relevante para que lhe seja dado um lugar especial na cinematografia mundial – muitos tentam de certa forma desmerecer até mesmo este seu trabalho, creditando mais importância à participação de Orson Welles na realização da obra-prima do que ela efetivamente teve, ainda que seu poder em cena não mereça outra classificação além de genial: é impossível pensar em Welles sem que ele exale brilhantismo por onde passa, mas a excessiva valorização dada pela sua presença, de apenas uma semana nos três meses de filmagem, pode ser explicada por preconceito ou escassez de informação, frutos do ostracismo que Reed parece sofrer entre o público e crítica até hoje.
Em Trapeze, o mestre Mike Ribble (Lancaster) carrega duas heranças da acrobacia: o nome na história (como um dos seis “voadores” que conseguiram realizar o famoso salto triplo) e a perna direita manca – logo na cena inicial, acompanhamos a última participação no seu disputado número, filmada magistralmente: os ângulos são perfeitamente explorados por Reed, dando a sensação de não apenas acompanharmos os saltos, mas fazermos parte deles. Após a queda, Ribble abandona definitivamente a acrobacia para ser um simples trabalhador no circo. Até a chegada do aprendiz Tino Orsini (Curtis), que deixa Nova York para realizar o sonho do salto triplo. Indicado pelo seu pai, Orsini deixa bem claro a Ribble que apenas ele pode lhe ensinar. E este, após muitas recusas, percebe o talento do obstinado jovem, o que lhe traz de volta a sensação de prazer no retorno à rotina circense. E a necessidade de bastante treinamento, evidentemente.
Mas então entra em cena a sedutora Lola (Gina Lollobrigida), uma moça que possui mais curvas do que talento – e costuma utilizar essa diferença de potencial para conseguir o que quer investindo em decotes e maiôs ousados. Ela, uma italiana, não pretende estagnar sua carreira em circos menores, e para isso é capaz de abandonar os antigos companheiros de palco e atiçar no medíocre dono do Cirque d´Hiver a idéia de que o público está atualmente mais interessado na beleza física (ou seja, ela) – e não tanto mais na artística. Para isso, porém, precisa romper uma barreira: Mike Ribble, que, experiente, começa a colocar na cabeça de Tino Orsini que a moça se interessa apenas por ela mesma – e que o interesse dela por Orsini não passa de uma tática baixa, utilizada inicialmente sem sucesso no próprio Ribble.
E para provar que está certo, o personagem de Burt Lancaster é capaz de assumir uma posição semelhante à de Lola: decide seduzi-la. Ao perceber que a moça tem, no fundo, uma queda por ele, começa a utilizar-se dos mesmos artifícios – veremos, então, uma espécie de disputa de feitiços. É como se, no ponto de vista de Ribble, ele estivesse vestindo a capa do mal para realizar um bem maior: elevar Orsini a um patamar grandioso na sua promissora carreira, ameaçada pela presença do egocentrismo de Lola. E essa inversão de papeis é absolutamente genial. Uma pena, porém, que dure pouco: Carol Reed começa então a desfazer as imagens dos personagens, dando a entender que muitas delas estivessem na verdade embaçadas pela obsessão ao sucesso – o que não teria problema algum não fosse a rápida duração com que essa desconstrução é feita, o que me leva a crer que o rumo abrupto da história possa ter sido tomado para agradar ao grande público. E, de fato, Trapeze foi um dos filmes de Carol Reed com maior sucesso de bilheteria.
Mas, apesar do escorregão dos 30 minutos finais – ainda que seja sempre necessário rever essas obras que confrontam nossas expectativas e intenções ao que é decidido pelos criadores -, Trapeze apresenta qualidades que não podem ser ignoradas: a espetacular fotografia, a competência do elenco, a trilha sonora (Danúbio Azul de Strauss Jr. nas apresentações dos números) e a direção hitchcockiana de Oliver Reed – que, me atrevo a dizer: também inspirou o mestre em Vertigo, principalmente se comparadas as cenas iniciais dos dois filmes. Do ponto de vista histórico, Trapeze é um vestígio da importância que os circos tiveram no mundo do entretenimento, hoje com investimentos escandalosos na produção e publicidade – mas ignorando cada vez mais a inocência e honestidade que possuía em outras épocas (o que inclui, é claro, o próprio cinema).