[…] O processo de um envolve todos – K, como o camponês, não conhecerá a Lei, como os que a servem não a conhecem: tanto a sentinela como o inspetor e os juízes e os verdugos. E se, ao contrário do camponês, K pode mover-se, nenhum movimento o fará livre. “Alguém deve ter dito mentiras sobre Joseph K…”, mas se K não é culpado de algum crime, alguma coisa lhe dá um vago sentimento de culpa – “a culpa em Kafka está sempre lançada no passado; muitas vezes sua natureza jamais é esclarecida: a história começa com o castigo, que não se sabe como chegou a ser ou se é merecido. Nós já estamos julgados” (Claude-Edmonde Magny, “Les sandales d’Empédocle”). Assim, nada a corrigir, porque nada mudará qualquer coisa? E se K se move, o solo também é movediço; seu itinerário é abrir portas e mais portas que só se deixam abrir para aumentar a perplexidade e a angústia.
Nos passos finais de The trial, a reinterpretação wellesiana opera em K uma semimetamorfose. Em vez de continuar vagando submisso, na hora da execução a ansiedade, o medo e o conformismo se dissipam. Ele encara os verdugos, compelindo-os a baixar os olhos e guardar a faca desgastada pelo uso. Terá sido aí que experimentou seu primeiro instante de lucidez, traduzindo num gesto de revolta, o que talvez possa significar um instante de triunfo. Não morre “como um cão”, quando a bomba explode, e o processo termina com essa provocação – a que atingiu em cheio o alvo e possivelmente a única feita com premeditação entre todas as que fez Welles como cineasta independente, criador, dono de seu estilo. E que só vêm a ser provocações para aqueles kafkianos ortodoxos, para os quais até a submissão de Gide, ao adaptar a história ao teatro é inadmissível. A essa ortodoxia é que Welles destina, in extremis, meia dúzia de bananas de dinamite.
Hoje Kafka, outro dia Shakespeare – o gênio de Welles não tolera qualquer ortodoxia. Isso que mantém íntegra a sua filmografia, isso o define ainda como o individualista para quem, agora mais do que ao tempo de Kafka, o processo é mais terrível, porque mais forte a pressão da ordem social, avassaladora e corrupta. Quando o atualiza, Welles age conscientemente, ajustando apenas em grau uma realidade-fantasmagoria, bastando-lhe isso para apresentar o produto do cruzamento do autoritarismo com a tecnologia: esse Estado que reduz homens a números, tornando-os escravos de máquinas que já os substituem, mantendo-os permanentemente sob tensão. Um Estado onde “o superior que ordena, defende e pune aparece como sendo, ele também, escravo de um Poder superior” onde Deus ou seu equivalente está coberto com um lençol ou foi abolido; onde a Igreja é tolerada, mas podia não ser tão evasiva; e onde a arte é oficial, o pintor famoso sendo aquele que retrata as autoridades, os juízes, limpando-os os defeitos, fazendo o que lhe determinam. Um Estado, por fim, que é gerido por homens ignorantes, sádicos, preguiçosos e promíscuos. E o estudante de Direito, animalesco no físico e na satisfação pública de seus instintos e “civilizado” bastante para o tráfico de influências, leva a amante conformada para a cama do juiz que o fará progredir em sua carreira; até ele também ser juiz: também o futuro é corrupto.
Em The trial de Welles, as referências são válidas retrospectivamente e hoje, mais ainda. O indivíduo, o homem, tem sido a vítima da rotina planejada, dos “slogans” ininteligíveis, sobretudo de si mesmo, porque não protesta – como Welles ao induzir K a um esboço da revolta que o cineasta parece sentir diante desse cada vez mais novo mundo.
Antonio Moniz Vianna, 1963.