Era uma vez na América (1984)

Quando um cineasta consegue imprimir sua marca autoral e influenciar sucessivas gerações mesmo com uma filmografia pouco extensa, não há dúvidas de que nos poucos filmes produzidos há um gigante senso de localização – do diretor em saber quais são as suas pretensões e quais são suas afinidades construídas ao longo de anos. Sergio Leone, que cresceu vendo os filmes de John Ford, idealizava uma América orgulhosa e confiante, mas logo a realidade e a história trataram de mostrar que as coisas não eram bem assim – na verdade, o que existia de fascinante também carregava traços de imundície e vice-versa, em uma composição que só poderia ser feita por humanos, em qualquer lugar do mundo. Eis porque os temas tratados em seus filmes são universais, mas neste em particular, como logo trata de definir o título, eles estão bem relacionados com a América – em um projeto que Sergio Leone demorou anos desenvolvendo, um épico sobre parte da história da maior potência do século 20, capaz tanto de encantar pessoas com entretenimento de primeira categoria quanto de abismá-las com grandes casos de corrupção e violência envolvendo empresas, políticos e tráfico ilegal; ou ensinar grandes lições de democracia e ao mesmo tempo passar de todos os limites nas guerras e conflitos mundo afora.

Como escreveu Rodrigo Carrero, do site Cine Repórter, “… Para Leone, não era à toa que os EUA tinham se tornado a maior potência do planeta. A nação norte-americana unia em partes iguais elementos aparentemente incompatíveis: finesse e truculência, bom gosto e vulgaridade, pendor artístico e violência. Cultura e barbárie conviviam sem contradições na alma de um norte-americano típico, pelo menos para Leone. O diretor queria explorar este conceito em uma narrativa nostálgica sobre os velhos e os novos tempos da máfia.” Não bastasse a criação de um verdadeiro épico contemporâneo, sob as luzes da mais refinada fotografia, aos moldes das obras-primas de Coppola, Once upon a time in America conta ainda uma história de mistério, tão intrigante quanto enigmática, construída – e escondida – em mais ou menos cinco décadas de vida dos dois principais núcleos da narrativa, os amigos gângsteres interpretados por Robert De Niro e James Woods. Nessa história marcada por uma traição do passado cujas cicatrizes não se fecharam completamente, ainda há respostas a serem encontradas, ou porque elas se perderam pelo caminho ou porque ainda serão dadas – de uma forma que o filme seja um perfeito caso de acerto de contas violento e poético entre o passado e presente.

Na sua curta filmografia, a evolução de Sergio Leone é bastante clara. O compositor musical permaneceu o mesmo – e por que haveria de mudar o maior de todos os tempos? – mas a estética se aprimorou e os temas se aproximaram do lado social – olhando para trás, Quando explode a vingança [Giù la testa, 1971] é a perfeita ligação entre os seus filmes do oeste e a sua pretensão de analisar a sociedade do século 20 sob um ângulo mais crítico e relacionado às ligações políticas, tomadas por corrupção, falsos líderes, aproveitadores e aquela massa menos esperta que fica pelo caminho no final da história; cronologicamente é também o último a ser dirigido apenas por Leone até o fim do longo hiato que  levaria a realizar, enfim, Once upon a time in America, o seu projeto mais ambicioso – e, como tinha que ser, o melhor. Os pistoleiros, mais tarde, foram substituídos por gângsteres, mas as ambições e as leis próprias continuaram as mesmas – especialmente aquele código de lealdade entre os iguais cuja quebra é até hoje mais grave do qualquer outro crime.

“Vamos dizer que eu seja uma socialista desiludido. Ao ponto de me tornar um anarquista. Mas por ter consciência, sou um anarquista moderado que não sai por aí explodindo bombas. Quero dizer, já tive experiência com quase todas as falsidades que podemos presenciar em nossas vidas. Então, o que permanece no fim? A família. Que é o arquétipo definitivo – transmitido desde a pré-história.

O que mais existe? Amizade. E isso é tudo. Sou um pessimista por natureza. Com John Ford, as pessoas olhavam para fora da janela com esperança. Eu – eu mostro pessoas que estão assustadas em até mesmo abrirem suas portas. E se fizerem isso, elas tendem a levar um tiro bem entre os olhos. É assim que as coisas são.” (Sergio Leone)

Grandes filmes de verão #3

Mulheres bonitas, praias, piscinas, pôker, bares, cruzeiros, viagens em trens, essas coisas.

Crown, o Magnífico (The Thomas Crown Affair, 1968)
A Princesa e o Plebeu (Roman Holiday, 1953)
Boogie Nights - Prazer Sem Limites (Boogie Nights, 1997)
O Pecado Mora ao Lado (The Seven Year Itch, 1955)
Era Uma Vez no Oeste (C'era una Volta il West, 1968)
Os Caçadores da Arca Perdida (Raiders of the Lost Ark, 1981)
Charada (Charade, 1963)

Sergio Leone dirige

Eli Wallach e Clint Eastwood em Três homens em conflito (1966)

Estou trazendo de volta a ação Western. A figura do cowboy se perdeu em psicologia. Várias tentativas têm sido feitas para explicar os motivos tanto dos heróis quanto dos vilões e torná-los compreensíveis e aceitáveis nos termos modernos. O Oeste foi feito por violência, homens simples e é essa força e simplicidade que eu tento recapturar nos meus filmes.

Quando Explode a Vingança (Sergio Leone, 1971)

Há uma cena em Giù la testa (nos Estados Unidos, A fistiful of dynamite ou, como queria Sergio Leone, Duck you, sucker) que deixa clara a relação causa/conseqüência das revoluções populares. Um camponês mexicano, interpretado por Rod Steiger, é levado, como objeto exótico, para uma carruagem que transporta alguns representantes da elite local – lá é humilhado, tratado como um animal selvagem que “pode ser domesticado”. Os focos nos olhares de desprezo, raiva, esnobismo, no mastigar arrogante dos transportados servem para mostrar a agressividade dos reacionários e causar repulsa, não apenas no camponês mas também no público – Leone, assim, já escolheu seu lado no conflito.

A carruagem sofre uma emboscada por camponeses que, tempos atrás, subordinavam-se e ajudavam a empurrar o transporte – desta vez, as coisas mudaram radicalmente: os oprimidos quebram a frágil barreira que os separavam da minoria, rendem os burgueses e matam os que tentam reagir, tomam os seus pertences (deixando todos nus) e, por fim, tratam também de humilhá-los. Nessa seqüência, a lição já foi dada: as revoltas não são gratuitas, todas provêm da opressão covarde, do poder na mão de pouquíssimos, na representatividade nula da maioria da população nas esferas financeira e política – se, após a tomada do poder, a opressão se manterá ou intensificará, isso é outra história que não cabe no projeto do filme.

O camponês humilhado depois se revelará o chefe do bando que, a princípio, não possui a consciência revolucionária – está apenas interessado em saquear – mas que já não aceita ficar à margem, na miséria. É o surgimento de um irlandês obcecado por dinamite (James Coburn), que integrara o IRA há pouco tempo e que carrega um trauma deste período, que levará este bando (e muitos outros) a combater as milícias locais subalternas aos interesses dos Estados Unidos e de uma extrema minoria latifundiária local. Sergio Leone nos transporta para os desertos tomados pela tensão e mostra as atrocidades que os governos antidemocráticos causam, até como forma de sustentação de poder (não esqueçamos que em território mexicano, sob influência capitalista, aqueles que eram pelo menos suspeitos de conspiração eram levados ao paredão).

É uma trama um pouco longa demais, mas com grandes momentos de êxtase que fazem com que tudo valha a pena – as cenas de ação, com grandes explosões e, mais especificamente, com um choque sensacional de um trem com outro vagão são impressionantes e grandiosas, lembrando que na época os efeitos especiais ainda não eram artifícios (muitas vezes artificiais) de filmagem, tudo era muito mais “brutalizado”. Lançado em 1972, com outra trilha sonora histórica de Ennio Morricone, não é nenhuma surpresa que Giù la testa tenha sido mais uma obra-prima de Sergio Leone, o diretor que havia revolucionado o faroeste por duas vezes até então.

Grandes momentos de Era uma vez no oeste

OBS.1: O diálogo entre Cheyenne e Jill me faz dar boas risadas por dentro e, por causa disso, é o meu preferido.

OBS.2: A última sequência, como está evidenciado acima, quase não possui diálogos, mas os olhares (repare no inicial e no final, como é tão poético), as expressões de sofrimento e raiva nos rostos dos irmãos e, claro, a trilha sonora (absolutamente a mais fodona do cinema) dizem tudo nesta que é a melhor cena do filme – o que não é lá uma novidade, né?

OBS.3: Pensei em colocar uma sequência dos peitos da Cardinale (que também dizem muita coisa sem uma letra sequer) mas, quando percebi que eles iriam roubar a atenção de todo o restante das imagens, acabei deixando pra lá.