A Noite Americana (François Truffaut, 1973)

La nuit américaine mostra como a produção de um filme é, ela mesma, um filme à parte, cujo acesso é restrito: apenas a equipe técnica, produtores e os atores (incluindo aí, às vezes, dublês e figurantes) têm a visão privilegiada do que acontece por trás das câmeras, nos bastidores e nas entrelinhas: os encontros, as intrigas e traições, os momentos de amizade, as disputas de ego, as dificuldades que surgem no meio do caminho – daí que, independentemente do resultado final, esse processo prova como não existe a possibilidade de se criar algo sem a presença de vida.

Há bastante vida em La nuit américaine. O grande trunfo do filme é justamente transportar esse elemento fundamental ao público com leveza, sem se levar muito a sério, mostrando que ali não estão pessoas de outro mundo, intelectuais revolucionários ou intérpretes brilhantes, mas seres humanos, com defeitos e qualidades. E, nesse processo de metalinguagem, a mensagem mais importante do filme é justamente mostrar como o cinema, produto essencialmente coletivo e por isso mesmo ainda mais humano, é por natureza uma arte popular, cuja conquista principal é ser contemplado pelo maior número possível de pessoas, independentemente de suas posições sociais, justamente para provocar o máximo de reações, interpretações e sentimentos.

Claro que, como processo de produção, existe todo um complexo de situações e interesses que interferem no alcance do cinema – ou de qualquer manifestação artística – mas não é esse o tema de La nuit américaine, afastando-se, por exemplo, de um filme genial como Assim estava escrito [The bad and the beautiful, 1952]. São as relações dos bastidores que roubam a cena – a atriz veterana com problemas de álcool, o jovem ator fanático por filmes que vive em uma realidade idealizada, o galã envelhecido que, para surpresa de todos (sem existir aí qualquer debate mais aprofundado, justamente para mostrar a naturalidade da coisa) se assume homossexual, a estrela inglesa que está passando por uma crise psicológica, além das figuras do suporte técnico, como a estagiária que não se satisfaz em manter apenas um relacionamento, a tímida maquiadora e a roteirista fundamental para o processo criativo; além da figura central, que praticamente dá a última palavra em relação a tudo, o próprio diretor de cinema, objeto de culto na cinefilia, auto-interpretado por François Truffaut.

Os dramas pessoais dividem a narrativa com os momentos mais divertidos possíveis, como a seqüência em que a atriz veterana repete a mesma cena consecutivas vezes porque não consegue abrir a porta correta ou quando a equipe espera, com paciência e quase desespero, pela “atuação” correta de um gatinho que não quer beber o leite programado – quando, enfim, dá tudo certo, a comemoração é geral e, aquilo que parecia ser absolutamente banal, ganha outros contornos inesperados, justamente por se escancarar esse fator humano que faz parte da produção do cinema e que é cada vez mais ignorado, especialmente nestes tempos insensíveis a qualquer tipo de expressão menos massificada.

La nuit américaine também serve como parâmetro para os tempos atuais. Faz nos lembrar como os filmes de hoje são tão industrializados e apáticos, o que leva a crer que até mesmo os bastidores estejam em situação parecida. Além do mais (o que é mais grave e relevante) obriga uma análise – não inédita mas talvez mais intensa – ao nosso redor: quantas pessoas sentem os filmes? Por que nossos conhecidos não se interessam por nada em especial, além do que está posto em mesa (o que espanta dado o alcance revolucionário que a internet possibilita)? Quais são os objetivos das pessoas além de se dar bem e fazer dinheiro? Enfim, um filme como La nuit américaine, além de divertidíssimo e cheio de vida, oferece várias discussões, todas elas tendo como ponto de partida um fato que une todos os personagens, os seus intérpretes, os técnicos e os cinéfilos: o amor pelo cinema.

Irma Vep (Olivier Assayas, 1996)

Irma Vep, a despeito de algumas seqüências aparentemente inúteis, é uma experiência interessante – experiência mesmo, porque é um filme que foge do comum: acompanhá-lo é como andar no escuro, sem saber exatamente onde está pisando, tudo assim meio incerto. Por vezes parece que a história vai seguir determinado rumo, mas logo percebemos que não é bem por aí. É, portanto, um filme que brinca com nossas expectativas e não se aprofunda em nada. Mas é justamente nessa (deliberada?) superficialidade que Olivier Assayas consegue tornar o filme próximo, cativante.

De início, parece que estamos diante de um daqueles filmes de metalinguagem cinematográfica. Observamos a realização da refilmagem do clássico mudo de 1915, Les vampires, levado adiante por um diretor decadente e neurótico (Jean-Pierre Léaud) e que conta com a estrela chinesa de filmes de ação, Maggie Cheung (que se auto-interpreta) no papel principal. Mas não é bem o making of que interessa aqui. São os bastidores, fora do set de filmagem, que recebem maior atenção – os personagens, como eles se relacionam entre si e a interferência disso na produção do filme.

O diretor quer fazer seu Irma Vep exatamente igual ao original – com exceção da escolha feminina no papel da heroína, por motivo que só ele sabe – oitenta anos depois. Não seria essa escolha a mais difícil? Como desconsiderar a realidade completamente diferente do presente (a indústria cinematográfica, o gosto do público, o modo de se fazer cinema na França contemporânea, os debates na sociedade mais heterogênea, etc) em relação ao passado? E a parte autoral, como fica?

Todas essas perguntas têm suas respostas no decorrer do filme, mas nenhuma delas parece ser lá muito importante. Até mesmo a figura do diretor parece perder a relevância com o tempo – o que, para mim, foi um aspecto negativo – e o foco se desvia para o relacionamento entre Maggie Cheung e a figurinista do filme Zoé, interpretada por Nathalie Richard. São essas duas personagens que mais cativam. Ambas são rebeldes, independentes, modernas, mas também frágeis e inseguras. Surge uma tensão amarosa entre as duas – e esse relacionamento acaba sendo, ao lado da produção do filme, o principal ângulo da história, assumidamente ordinária, quase uma comédia romântica.

Olivier Assayas não se preocupa em contar uma história, mas algumas histórias, todas curtas e descompromissadas. O mais importante – e nesse ponto o diretor alcança grande êxito – é criar um clima, uma atmosfera própria, que faz com que a experiência de acompanhar o filme seja extremamente prazerosa e visualmente instigante, ainda que, no final das contas, não se saiba exatamente o que foi extraído de tudo isso. E é justamente esse o provável motivo que explique o culto criado em torno de Irma Vep desde o seu lançamento.

O charme do cinema europeu #1

Federico Fellini em tempos de 8½.
Jean-Pierre Léaud e François Truffaut.
A maravilhosa Liv Ullmann.
Louis Malle feliz da vida.
O fodão Michael Caine.
Alain e Nathalie Delon.
Jean-Luc Godard e Brigitte Bardot nas filmagens de Le Mépris.